Por: Profa. Dra. Cecilia Cardoso Teixeira de Almeida
Não é novidade nem incomum para a comunidade de geógrafos o interesse pelas questões ligadas ao modo de vida das formações sociais e suas condições de salubridade. E, em especial no que se refere ao entendimento das muitas causas que expõem certos países e regiões inteiras a uma maior vulnerabilidade frente às enfermidades. Temos como expoente dessa vertente o francês Maximilien Sorre (1880-1962) cujas ideias tanto influenciaram o brasileiro Josué de Castro em escritos como Geografia da Fome: A Fome no Brasil (1946) ou Ensayos sobre el Sub-Desarrollo (1965) ou ainda ¿Adonde va la América Latina?(1966) entre outros, onde demonstra claramente um total comprometimento político e social com esse tema.
Hoje, estamos vivendo no Brasil e no mundo, o enfrentamento do coronavirus ou COVID 19, cuja particularidade se refere justamente à facilidade com que se propaga, atingindo de forma letal crianças, idosos ou pessoas com doenças crônicas como diabetes e hipertensão. Em tempos não muito distantes ainda no século XX, fomos submetidos a uma série de surtos como a gripe espanhola, gripe asiática, cólera, a polêmica HIV/AIDs, e já no século XXI surto de sarampo, gripe A, febre zika ao que somamos no caso do Brasil, Chikungunya e dengue.
Ora, diante desse quadro de pandemias e epidemias regionais temos em comum, o fato de se relacionarem as situações específicas em que se inserem os indivíduos em sociedade e em determinado momento. Certamente são moradores de ruas e comunidades das periferias nas grandes aglomerações urbanas que se encontram mais propensas a essa infectologia porque tem total ligação com o acesso a infraestruturas como tratamento de água e esgoto, situações de moradia, tipo de atividade para sustento, estado de saúde, de informação e desenvolvimento educacional, e outros mais.
Aqui, portanto pretende-se desenvolver que o óbvio se transformou em emblema. A luta pela sustentação da vida tornou-se pauta nas redes de informação e nas disputas entre autoridades científicas, condução da gestão pública e das atividades produtivas/ especulativas. Formas de ação por vezes antagônicas demonstram claramente qual é o grau de relevância a que cabe a esmagadora maioria da população (do Brasil e do mundo).
Por que pandemia?
No mundo atual em que o Estado e a economia política imperam sobre o social com seus ditames de reformas trabalhistas e previdenciárias, que atormenta com índices, gráficos de curvas, custos e lucros, contando ainda com a ciência ligada ao setor produtivo e especulativo, difícil supor que esse mundo estava indo bem mas que até a pandemia era o que tínhamos, ou seja, as mesmas condições de descaso com relação a vida social. No entanto, dava pra levar e nem sequer menção de uma grande comoção e reação. Por que? Como entender tamanho descolamento entre razão e realidade cotidiana?
Historicamente foram gerados juízos de valores obscuros assegurados como única forma dentro de um esquema de divisão de trabalho e de reprodução social que envolve a apropriação das riquezas por parte de uma minoria às custas da expropriação de uma imensa maioria. Esse caráter uníssono desse movimento foi naturalizado e a nós se posta como o normal e como consolidado e racional. De um lado a cabeça que pensa a execução das atividades para que todos os demais braços as executem. Acreditamos, aceitamos, endossamos e reproduzimos achando graça e liberdade no tempo tirado para férias. Qualquer indagação que fira os propósitos econômicos será julgada supérflua e inapropriada pelas instituições que os asseguram tornando-se no mínimo uma distopia pouco pragmática.
A atividade do trabalho asfixiado pelo atormento da obrigatoriedade e do receio ao desemprego, encontra no consumo um teor de realização individual e coletivo solidarizando-se com os templos e com os cultos para o exercício da resignação e da esperança. Muito se pede e se faz em nome do dinamismo econômico tomado como bem social. Também a esses se solidarizam os meios de comunicação de massa, grande parte das escolas e redes sociais. A conservação do grau e do ritmo da produção submete e encilha os trabalhadores. Nações inteiras acreditam ser esse mesmo seu destino, tomando pra si uma valoração que diz respeito ao quanto se leva no bolso ou quanto se acumula na conta bancária. “Emprego bom é remuneração boa”. O trabalho é um meio para alcançar um determinado fim, – o salário. E, isso ainda que não seja, nos parece absolutamente razoável. Para aqueles considerados à margem esses critérios de valoração social dados na vida cotidiana permanecem e a máxima continua valendo – você é o que carrega no bolso”.
Quem são os indivíduos que estão empregados com carteira assinada, conta bancária e dinheiro para acumular?
Cresce o lugar ocupado pelo acesso e pela velocidade da informação, a homogeneização dos códigos de linguagem e de padrões de comunicação aliados a dolarização das relações internacionais de produção e comércio e das bolsas de valores permitindo difundir uma espécie de ética (duvidosa) que nesses tempos de pandemia permitem elucidar. Enquanto trabalhadores de atividades como a recolha de lixo ou a limpeza das calçadas outrora esquecidos, agora são destacados e enaltecidos como verdadeiros heróis que permitem a nossa quarentena. Mas antes não?
Repetindo.Vivemos um momento em que o mundo virou um só e parou. Parou por conta de um vírus que necessita de ações simples e de cuidados e de higiene mas que se espalha com facilidade em aglomerações humanas, podendo mesmo levar a morte. Um vírus saído desse modelo produtivo que hoje solicita quietude e isolamento na contramão do produtivismo e do consumo dirigido.
Os dados da economia enlouqueceram. Bolsas de valores com altas e baixas, cotação do dólar nas alturas, alaridos de prejuízos na indústria, no comércio, no setor agrícola, especulação de toda sorte de artigos e algumas especificidades no Brasil como o superfaturamento do gás doméstico, diminuição do preço da gasolina, promoções na comida por entrega antes inconcebíveis e agora cabíveis. Os preços baixam e sobem de região para região, as pessoas se munem de gêneros alimentícios, de higiene e de limpeza ao que o Estado define como artigos de primeira necessidade.
Suspende-se o cotidiano. A prática rotineira de ações e de percursos descritos entre casa – trabalho – abastecimento doméstico – sociabilização (não necessariamente nessa ordem) foi removida e nos reportam aos tempos de conflitos mundiais em que a atmosfera de incertezas predomina.
De outro lado, parece que podemos ter menos, produzir menos, poluir menos e que todas as considerações sobre perdas e danos do setor produtivo e financeiro, esse terrorismo legitimado com a alcunha de pretensa racionalidade e que aponta para uma crise sem nome são esparrelas diante a preservação da vida dos indivíduos.
O que terá acontecido para que em pleno século XXI um vírus seja capaz de colocar em evidência a manutenção da vida? Como podemos aceitar viver sem assegurar essa perspectiva? Que valor tem a vida humana para àqueles a quem delegamos poder de decisão sobre nossas próprias existências, no mais alto nível de intimidação e de alienação?
Que fique registrado. O cotidiano nas diferentes partes do mundo demonstra uma inversão. Para a Economia Política somos apenas força de trabalho, custo produtivo, demanda de consumo, reprodutores da continuidade dessa geografia, cidadãos pagantes de impostos e tementes a Deus. Posição frágil a nossa se considerarmos os imperativos da sobrevivência inelutável. Todavia, estamos assistindo e participando ativamente de uma decontinuidade deflagrada por essa pandemia. O caráter universal da humanidade emerge e as indagações com ele.
O cotidiano foi suspenso e milhões de pessoas estão em casa ou saindo o menos possível em pleno andamento de 2020. Nem trabalham nem levam seus filhos à escola. Comemorações, feriados religiosos, eventos, reuniões, congressos, shows todos cancelados ou adiados. O imprescindível deixou de ser e o tempo voltou para as nossas mãos e não temos certeza se isso é bom ou ruim. Perdemos a medida e estamos assustados. As crianças se alegram. Mais tempo brincando, sem escola e pasmadas com pais e irmãos em casa. Um circuito que se abre e demonstra as fragilidades de todo esse esquema de realização do capital.
Está dada uma situação que não escolhemos e que está posta para o mundo inteiro. Mulheres, homens, ricos pobres, gays, heteros, brancos, negros, amarelos, indígenas, representamos um todo que insistimos em dissipar.
Ruas e avenidas vazias, circulação de veículos sem engarrafamentos, comércio apenas o necessário e poderia aqui seguir pensando sobre o que vem a ser esse necessário. E faz mesmo pensar. Toda essa galeria de absurdos a que nos submetemos revela-se nesse instante , e a mudez, que o estranhamento produz se rompe: um lapso de desalienação? Talvez.