Ariane Dantas Privitera
Jaqueline Bastos de Freitas
Ricardo Devides Oliveira
A nova década do século XXI iniciou turbulenta e, desta vez, com um problema inimaginável. Não era esperado, em plena corrida dos países rumo a uma estabilização de suas economias, dada às consequências da crise econômica que se arrastou ao longo dos anos, que iriam se deparar com uma crise sanitária de enormes proporções. O surgimento da SARS-Cov-2 ocasionou, de modo repentino, a quebra da rotina de milhões de pessoas. O ritmo frenético e acelerado das atividades econômicas foi obrigado a refrear. Diante deste novo cenário mundial, a sociedade globalizada viu-se defronte a novos dilemas, mas, “perdida” quanto aos novos rumos de suas ações.
No aspecto econômico, alguns apontamentos podem ser necessários para a compreensão da origem do novo coronavírus e sua rápida propagação. A acumulação flexível1[1], forma que ganhou lugar no regime de acumulação econômica, afrouxou as leis de proteção ambiental e climática por todo o mundo, tendo como uma de suas consequências, entre outras, o lançamento sob a atmosfera toneladas de gases tóxicos advindos da poluição, a exploração e o desmatamento cotidiano de florestas . Tais fatores poderiam levar a consequências já premeditadas por pesquisadores. Uma delas seria o surgimento de epidemias[2].
Pesquisas recentes apontam a existência de vírus desconhecidos em geleiras, e que devido à crise climática, podem ser “reativados” e expor a humanidade a riscos[3]. Um outro risco a qual os países podem vir a sentir nos próximos meses e anos, junto com o enfrentamento ao SARS-CoV-2, são as chamadas “nuvens de gafanhotos”, que devoram plantações, principalmente monoculturas, podendo provocar, em dado momento, crises de abastecimento em diferentes mercados.
O fato do vírus Sars-CoV-2 ter surgido em um país como a China e não em um país ocidental, provocou nas diferentes mídias determinadas concepções que não se alinham aos fatos verdadeiramente ocorridos, bem como, o surgimento, antes velado, dos preconceitos contra hábitos culturais asiáticos. Acusações feitas por meio da mídia ocidental para a China, por ter “negligenciado” o aparecimento do novo coronavírus[4] e pela ação governamental diante da situação ter sido lenta inicialmente, não fazem sentido em uma sociedade mundial estruturada na supervalorização do econômico e que se encontra acima de valores que fazem jus à uma melhor qualidade de vida da população, como, a democratização do acesso à saúde pública, por exemplo. Algo que se tornou fundamental e que demonstrou ser necessário, principalmente em países como os Estados Unidos[5].
O ano de dois mil e vinte, animado por acontecimentos anteriores e por um “desvio de caminho” na lógica capitalista global, que foi o novo coronavírus, iniciou-se complexo. Foi também marcado pela presença de narrativas anticientíficas que visam propagar desinformação em prol de interesses políticos e econômicos. Diante deste cenário, a Geografia se apresenta como necessária para a elucidação dos fatos.
Em países como Estados Unidos e Brasil, surgiram ondas conservadoras e contrárias às medidas de isolamento social e ao fechamento de comércios. Ambas, políticas necessárias para o combate da disseminação do novo coronavírus.
Movidos por grupos organizados dentro de redes sociais, os manifestantes alegaram estar sob uma conjuntura manipulada pela China, supostamente imbuída da tentativa de ocasionar a devastação da economia destes países, e, assim, poder instalar seu regime econômico e político em escala global.
Essa narrativa ganhou força no Brasil devido à enorme propagação de mensagens que possui o aplicativo “WhatsApp”, fazendo com que parte da população brasileira minimizasse os acontecimentos relacionados ao novo coronavírus e a furar a quarentena. Tais atitudes encontraram eco nas abordagens do presidente da República do país, que, em seus pronunciamentos, instigou a população a retornar à normalidade[6].
O ato de negar a gravidade da pandemia tem se expressado em grupos com tendência ao conservadorismo. Ganhou também espaço entre os empresarios, que sentiram o impacto de seus estabelecimentos fechados e utilizaram como uma de suas narrativas para justificar a priorização da questão econômica.
Grupos conservadores e, principalmente setores empresariais dos países em quarentena provocaram tensões no interior da sociedade. No caso de Milão, na Itália , a opção pelo não fechamento do comércio e dos serviços teve como consequência o aumento do número de casos e mortes por coronavírus[7]. Em Nova York, nos Estados Unidos, o atraso em não estabelecer a quarentena provocou o congestionamento do sistemas de saúde e funerário[8].
Com o isolamento social em queda no Brasil, especialistas preveem um maior impacto na sociedade e, consequentemente, a uma quarentena mais prolongada[9].
Essas ações apontam como a ideologia dominante na sociedade, a saber: a do individualismo e da supervalorização da economia. Ambas se encontram bastante introjetadas na sociedade, levando os sujeitos a atitudes de banalização de questões vitais, como, por exemplo, a priorização do bem estar da população como um todo, principalmente em tempos de pandemia.
Indo em uma direção oposta, há os que alegaram que o vírus surgiu em laboratórios dos Estados Unidos, e que chegou a China por meio dos Jogos Militares de Wuhan, em 2019. Foi o que o representante oficial do governo chinês, Zhao Lijian disse em sua rede social. Foi interessante observar que o governo chinês e o governo russo estejam investigando pistas que envolvam diretamente os Estados Unidos na propagação do novo coronavírus. Por outro lado, autoridades médicas, como é o caso do ganhador do prêmio Nobel, Luc Montagner, afirmam que o vírus SARS-CoV-2 poderia ter surgido no laboratório de biomedicina de Wuhan.
No interior destas ideias ditas “conspiratórias”, há heterogeneidade relacionada ao surgimento do vírus e do objetivo de seu aparecimento. Porém, muitas delas relacionam o envolvimento das potências mundiais, China e Estados Unidos, como protagonistas em torno do que se considera uma luta política por dominação. Ideologias que tentam negar o impacto do novo coronavírus e seu surgimento como consequência das inter-relações entre sociedade e natureza ocultam interesses políticos e econômicos.
Hoje, a China está totalmente integrada a economia mundial, e se prepara para ser a grande liderança. Com investimentos em quase todos os continentes, a presença chinesa é pragmática e visa o resultado econômico, mas, ainda, é capaz de provocar no Ocidente o estranhamento frente ao outro ( que é diferente).
O aumento da visibilidade para a China, sua formaçãode blocos econômicos e da construção de infraestruturas diferenciadas, como é o caso da “Nova Rota da Seda”, causou um misto de sentimentos em seus adversários, principalmente entre aqueles que também disputam novos espaços para além de suas fronteiras nacionais.
A presença chinesa nos países marcou também o impacto da influência cultural e política da mesma, a modificar conforme a condição e a localização de cada país entre os continentes. Mas, é notável que, na maioria das grandes cidades do planeta, há pelo menos um bairro caracteristicamente “chinês” e como, aos poucos e timidamente, elementos culturais chineses comecem a se apresentar nas opções culturais dos países.
São estes e outros elementos que fazem da China um gigante que se apresenta ao novo século. Não poderia deixar de existir sem provocar o estranhamento em seus adversários econômicos, que tentam, a qualquer brecha, utilizar-se de componentes que façam seu concorrente asiático perder credibilidade.
Parte desse estranhamento está relacionada aos comentários tendenciosos feitos pela mídia e líderes ocidentais sobre os procedimentos adotados por médicos em Wuhan e, principalmente, do governo chinês. O atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, defendeu a narrativa de que a China ocultou informações sobre o novo vírus, e se apoiou na adjetivação do novo coronavírus em “vírus chinês”[10]. Adjetivo que ficou famoso nas redes sociais por internautas que defendiam conspirações e dados anticientíficos.
No Brasil, líderes governamentais alinhados a política de Washington, provocaram crises diplomáticas com a China, como foi o caso do deputado Eduardo Bolsonaro[11] que, ao acusar o país asiático como o responsável pela pandemia de SARS-Cov-2 no mundo, desconsiderou as práticas e os procedimentos que cada país tomou no rumo do controle de dispersão do vírus em seu território. O ministro da educação no Brasil, Abraham Weintraub, publicou uma imagem dos quadrinhos “Turma da Mônica”, em que o ministro fazia a relação entre a personagem “Cebolinha” e a China, fazendo declarações de que sairia geopoliticamente fortalecida com a pandemia[12].
Vimos como é importante a compreensão das dinâmicas geopolíticas para o entendimento dos conflitos que se colocam diante do cenário mundial, pois esclarece os interesses políticos e econômicos dos atores que movem a geopolítica. Mas, elas em si não explicam todo o problema.
O surgimento do novo coronavírus, segundo artigo publicado na plataforma digital da revista Nature[13], indica aproximação com o mercado de peixes da cidade chinesa. Neste mercado funcionava o comércio de animais silvestres, dentre eles, os animais indicados por serem aqueles que transferiram o vírus aos seres humanos, possivelmente o morcego ou o pangolim.
O pangolim malaio era comerciado ilegalmente junto a outros tipos de animais, que eram colocados de maneira muito próxima uns aos outros, facilitando a transmissão de doenças entre eles.
Não está certo como o vírus SARS-CoV-2 sofreu mutação até chegar aos seres humanos, mas, a primeira transmissão ocorreu de forma não detectável, a ponto de levar a reprodução viral a uma escala pandêmica.
É esta a situação mais próxima da realidade do surgimento do novo coronavírus e que possui relações como a sociedade interage com a natureza, vendo-a principalmente como um recurso a ser explorado sem limites. Tal condição expressa as mais primitivas interações entre sociedade e natureza, a ponto de não serem percebidas e até mesmo ocultadas, para que não sejam questionadas, pois encabeçam a economia mundial
Sabemos que, inicialmente, a conquista da natureza foi primordial para o desenvolvimento humano. Foi com a exploração de rios, florestas e a domesticação de animais que os seres humanos puderam constituir e reproduzir suas vidas, tendo como produto final, o surgimento do espaço geográfico com a modificação da natureza pela ação humana, e é onde viveram e vivem homens e mulheres ao longo da história
O espaço geográfico modifica-se conforme as épocas. Hoje, temos grande parte da humanidade vivendo em cidades, parcelas de terras sendo destinadas a monoculturas e parques industriais que expelem diariamente toneladas de poluentes. A humanidade chegou a um nível de tecnicidade e racionalidade sob o espaço geográfico, que este é denominado, de acordo com o geógrafo Milton Santos, como meio técnico-científico – informacional[15].
Com a exploração ilimitada da natureza, e, principalmente, de uma forma predatória, a sociedade gerou diversas fragilidades ambientais, ecológicas e sanitárias. Esse processo criou riscos à vida humana e natural do planeta. Isso vem se intensificando, quando a humanidade está cada vez mais se urbanizando e industrializando-se.
É sobre um espaço geográfico fragilizado que vive a humanidade atualmente, e de maneira desigual conforme a classe econômica e a condição étnica. A apropriação do ser humano sobre a natureza e a criação do espaço geográfico não são realizados de forma igualitária. O controle está sob os que possuem meios de apropriar a natureza em grande escala e que têm infraestrutura para isso e modificar o espaço. A produção da geografia, portanto, expressa relações desiguais entre os membros da sociedade e a exploração indiscriminada dos recursos naturais também ocorre desta forma.
Sendo o espaço geográfico produto de relações desiguais e enraizado em condições de exploração predatória da natureza, uma situação aparentemente insignificante, de um animal enjaulado em um mercado, foi capaz de provocar uma crise complexa devido a forma como a sociedade estabeleceu-se em seu modo de vida e no espaço geográfico, pois, estas condições são expressas também no cotidiano, de aspecto banal, mas que também reflete questões estruturais.O animal, que não teve escolha em sua condição e de estar em um mercado, manifesta uma sociedade que subjuga outras formas de vida (e isso é revelador da questão homem e natureza) e com isso, prioriza o aspecto puramente econômico sem levar em consideração questões éticas e sanitárias.
Para o geógrafo do século XIX, Elisée Reclus, os processos históricos se originam e se desenvolvem nos lugares. Não é possível repensar novas relações na sociedade sem levar em consideração as relações com a natureza e o espaço geográfico. As ações humanas se processam no espaço, que é alterado .continuamente Somos influenciados por sua constituição, não sendo isentos de sofrer as consequências das ações realizadas.
O surgimento do novo coronavírus reflete relações originadas na sociedade e no espaço geográfico, lugar da vivencia humana. Suas inter-relações provocaram o desenvolvimento da humanidade, mas, também, graves consequências ao longo da história. Com um espaço geográfico cada vez mais frágil pelos processos econômicos e sociais, a humanidade se vê diante de novas ameaças e sua instabilidade nos próximos anos.
É preciso repensar essas inter-relações. Repensar a reprodução do espaço geográfico, a forma como se dá a exploração dos recursos da natureza e as dinâmicas sociais. Não se sabe quais serão os próximos rumos que a humanidade tomará no pós-pandemia, mas, certamente, é necessário questionar seu modo de reprodução no planeta.
[1] O termo acumulação flexível é empregado de acordo com a exposição do geógrafo David Harvey em seu livro “O Enigma do Capital”.
[2] DW. Especial Amazônia. O elo entre desmatamento e epidemias investigado pela ciência. [S.I]. Abril de 2020. Disponível em: https://amp.dw.com/pt-br/o-elo-entre-desmatamento-e-epidemias- investigado-pela-ci%C3%AAncia/a-53135352. Acesso em: 15 de abril. 2020.
[3] G1. 28 vírus desconhecidos são encontrados por cientistas em geleiras no Tibete. [S.I]. Abril de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/01/24/28-virus-desconhecidos- sao-encontrados-por-cientistas-em-geleiras-no-tibete.ghtml. Acesso em 20de abril de 2020.
[4] O Globo. China e EUA acirram disputa de narrativas sobre novo coronavírus . [S.I]. Março de 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/china-eua-acirram-disputa-de-narrativas-sobre-novo- coronavirus-24318941. Acesso em 20 de abril de 2020.
[5] CORREA, Alessandra. A ameaça do coronavírus nos EUA, onde milhões não têm licença médica nem saúde pública. BBC Brasil. Winsto- Salem, EUA. 2020. Disponivel em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-5174684. Acesso em 04 junho de 2020.
[6] LACERDA, Nara. Na TV, Bolsonaro faz pouco caso do coronavírus e pede volta à normalidade. Brasil de Fato. São Paulo. 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/03/24/na-tv- bolsonaro-faz-pouco-caso-do-coronavirus-e-pede-volta-a-normalidade. Acesso em 20 de abril de 2020.
[7] CAMPOS, Luiz Henrique. “Erramos”: um mês após campanha para não parar, Milão tem 4,4 mil mortos. Correio Braziliense. Minas Gerais, 2020. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2020/03/26/interna_mundo,840540/erramos- um-mes-apos-campanha-para-nao-parar-milao-tem-4-4-mil-mort.shtml. Acesso em 21 de abril de 2020.
[8] UOL. Com gargalo no sistema funerário, Nova York cria necrotérios móveis … – Veja mais em https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/04/02/com-gargalo-no-sistema-funerario-nova-york-cria-necroterios-moveis.htm?cmpid=copiaecola. São Paulo. Abril de 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/04/02/com-gargalo-no-sistema-funerario- nova-york-cria-necroterios-moveis.htm. Acesso em 13 de maio de 2020.
[9] BNC Amazonas. Isolamento social no Brasil cai 20% e número de mortes é recorde. Amazonas. Maio de 2020. Disponível em: https://bncamazonas.com.br/ta_na_midia/isolamento-social-no-brasil-cai- 20-e-numero-de-mortes-e-recorde/. Acesso em: 13 de maio de 2020.
[10] Estado de Minas. Trump volta a chamar novo coronavírus de ‘vírus chinês’. Minas Gerais. Março de 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/03/24/interna_internacional,1132045/trump-volta- a-chamar-novo-coronavirus-de-virus-chines.shtml. Acesso em 20 de abril de 2020.
[11] G1. Embaixada da China repudia post de Eduardo Bolsonaro que culpa China pelo coronavírus. [S.I] Março de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/03/18/embaixada-da-china- repudia-post-de-eduardo-bolsonaro-que-culpa-china-pelo-coronavirus.ghtml. Acesso em 20 de abril de 2020
[12] UOL. São Paulo. Abril de 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2020/04/04/coronavirus-weintraub-usa-cebolinha-para-provocar-china-e-web-nao-perdoa.htm. Acesso em 20 de Abril de 2020.
[13] Andersen, K.G., Rambaut, A., Lipkin, W.I. et al. The proximal origin of SARS-CoV-2. Nat Med 26, 450–452 (2020). Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41591-020-0820-9: https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9. Acesso em 05 de maio de 2020.
[14] Essa noção é melhor aprofundada no capítulo “o Homem e a Natureza” que se encontra na obra: SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à Geografia. 2ºedição. Petrópolis: Editora Vozes, 1977.
[15] Essa concepção do geógrafo Milton Santos é melhor aprofundada em sua obra “A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção.”São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.