Seção local da Associação de Geógrafos na região do ABC Paulista

CUBA: IMPRESSÕES E INQUIETAÇÕES DE UMA VIAGEM À ILHA**

Por: VITOR MENDES MONTEIRO*

 

*Geógrafo, formado pela Fundação Santo André. Membro do Núcleo de Estudos Latino-Americanos. Viajou com as Brigadas de Solidariedade a Cuba

**Para um relato mais detalhado acesse no youtube: “NELAM – Um relato sobre Cuba: inquietações e impressões de uma viagem à ilha”

 

 

Resumo

Relato de parte das impressões do que pôde ser visto, ouvido, vivido, sentido e interpretado em uma viagem das Brigadas de Solidariedade a Cuba. O recorte do texto tem como foco as conquistas da revolução no campo dos serviços públicos, da cultura, da organização popular e das reformas de base, mas também a influência do turismo no imaginário popular, o anseio por avanços e pelo fim do bloqueio econômico. Partindo da premissa de tentar compreender a percepção dos cubanos sobre os estrangeiros, dos cubanos sobre eles mesmos, e de nós sobre eles.

Palavras chave: Cuba; reforma agrária; reforma urbana; bloqueio econômico.

Abstract

Reporting of the impressions of what could be seen, heard, lived, felt and interpreted on a trip of Solidarity Brigades to Cuba. The clipping of the text focuses on the achievements of the revolution in the field of public services, culture, popular organization and the basic reforms, but also the influence of tourism in the popular imagination, the yearning for progress and the end of the economic blockade. On the premise of trying to understand the perception of Cubans on foreigners, Cubans about themselves, and we on them.

 

Keywords: Cuba; land reform; urban reform; economic blockade.

 

 

O povo está em toda parte. Essa foi a primeira coisa que saltou aos olhos.

Durante os quinze dias de trabalho com a Brigada de Solidariedade, e viajando ao longo das províncias de ônibus, foi possível observar a paisagem e perceber que o padrão construtivo das regiões e bairros cubanos não apresenta diferenças gritantes – com exceção de Havana Velha, com sua arquitetura colonial. Nota-se também a presença da Associação Nacional dos Pequenos Agricultores (ANAP) por todo território. A reforma agrária e urbana, em Cuba, está consolidada.

No Brasil, ou em qualquer outro país capitalista, para quem estaria “reservada” uma avenida com casarões coloniais de frente para o mar?

–Vocês podem construir suas casas em qualquer lugar, mas não conseguem?– perguntava o cubano a quem eu tentava explicar a segregação dos bairros brasileiros e o financiamento habitacional.

– 30% do salário durante 30 anos?

A cada informação que recebiam sobre a realidade brasileira, os cubanos expressavam a incredulidade em seus rostos.

A falta de creche pública para todos, a dificuldade de acesso à universidade e o recorte de classe e cor que algumas profissões têm no Brasil também espantam os cubanos:

– Você está me dizendo que em um país com tantos negros, a maioria dos médicos é branca e da elite? Então depois de passar pelo pré-universitário (Ensino Médio) as portas da universidade se fecham para a maioria?

Serviços básicos privados em detrimento da qualidade dos públicos, desigualdade, miséria, dengue, moradia em áreas de risco, alienação política, violência, etc. A lista de assuntos que surpreendiam os cubanos poderia continuar por várias linhas. Também me perguntaram como é que estava a “Cidade de Deus” que viram no filme. Quando disse que há muitas “Cidades de Deus” pelo Brasil, pude perceber o assombro do interlocutor, e o esforço imaginativo que fazia para conceber a existência de mais de uma grande e violenta favela num país – pensava que o filme fosse registro de uma situação particular!

Se ficam impressionados com nossas mazelas é porque, de fato, muitos desses problemas não existem ou não possuem a mesma escala em Cuba (o que, absolutamente, não os fazem resignados).Não estão completamente satisfeitos como vivem; isso, porém, não quer dizer que não apoiem o processo revolucionário.

Em um país onde tudo é preto ou branco; onde simpatizantes do governo o são de maneira cega e a oposição a faz de maneira patológica, os brasileiros podem demorar a compreender essa postura do povo cubano: extremamente exigente com as melhorias que têm de acontecer no país, sem deixar de legitimar a revolução.

É fundamental medir cada lugar e cada sociedade com sua própria régua. Assim, incorre em grande erro aquele que, em Cuba, supõe que o morador de uma casa humilde e desprovido de alguns bens materiais, comuns para nós, também não tenha acesso a bens culturais e serviços de saúde e educação de qualidade.

 

Conquistas e desejo de mudanças

 

Quando as necessidades básicas são satisfeitas, surgem novas necessidades. É uma característica humana.

Com o fim da URSS, Cuba perdeu seu parceiro comercial e entrou no chamado período especial, momento de profundas dificuldades materiais para o povo. Demonstrando enorme resistência e capacidade de se reinventar, Cuba modificou sua matriz agropecuária e conseguiu sair desse período, garantindo alimentação para todos, assim como saúde, educação, terra e teto. Vitórias colossais, mas já não basta ter o mínimo.

Os dois fatores que dificultam que a maioria dos cubanos tenha acesso ao consumo são: o bloqueio econômico – que faz com que alguns produtos e serviços não cheguem ao território – e a relação entre salário e preço do que não é subsidiado pelo governo. Uma análise mais profunda nos permite ver que também os salários baixos são resultado do bloqueio, que limita o crescimento dos setores produtivos do país, sobretudo o segundo setor.

Aliás, não é possível observar os problemas cubanos sem relacioná-los ao bloqueio econômico imposto pelos EUA há mais de 50 anos, enquanto as virtudes cubanas são realmente frutos de seu povo e de seus esforços.

Nas conversas informais, durante as quase três semanas em que estive no país, senti que o desejo de “cambiar” com outros povos – a vontade de viajar e de utilizar mais amplamente os meios de comunicação – é o que os cubanos mais reivindicam para o futuro próximo.

O turismo é um importante fator para o crescimento do desejo de consumo, já que a presença do estrangeiro ostentador ilude; cria no imaginário um falso padrão de vida da população no resto do mundo.

No interior do país a presença do turismo é menor, a história da guerrilha e da revolução é viva e forte. Consequentemente, a pressão pelo consumo parece menor.

Um detalhe importante: a palavra consumo, aqui, refere-se ao acesso a alguns bens, mas nem de longe se parece com o consumismo nos níveis insustentáveis que conhecemos.

 

Saúde: menos mercado, mais humanidade

 

A inexistência de pressão ocasionada por disputa de mercado é fundamental para entender a qualidade humanizada da medicina cubana, provada na dedicação e sucesso em missões internacionais e nas políticas internas de medicina preventiva e da família.

Ao entrar num policlínico, o paciente é atendido por um clínico geral que, se não pode resolver o problema, encaminha o enfermo para um especialista. O mecanismo é o mesmo no Brasil. Entretanto, esse médico poderá receitar um remédio alopata ou homeopata; ou um tratamento com acupuntura, sem sofrer a pressão de empresas da indústria farmacêutica e sem que seu conselho regional deprecie as técnicas “alternativas” em razão de uma disputa corporativista. Nas farmácias, os chás e a homeopatia têm tanto prestígio quanto os medicamentos alopatas – estes últimos, produzidos em grande parte pelos laboratórios estatais.

Estão presentes nos policlínicos equipes multidisciplinares, com assistentes sociais e psicólogos, pois nem tudo se resolve com medicamentos. Essas equipes são responsáveis, por exemplo, por realizar o trabalho de acompanhamento psicológico das mulheres que desejam realizar o aborto, para garantir que a decisão não seja precipitada e que a recuperação do pós-operatório não seja traumática.

A medicina preventiva é uma cultura que tem, no povo, seu mantenedor. Os Comitês de Defesa da Revolução, que nasceram para conter os contrarrevolucionários que promoviam atentados no começo de 1960, atualmente promovem ações de saúde preventiva, esporte, integração da vizinhança, dentre outros.

 

Retomada do diálogo com a ave de rapina: a aposta na educação

 

Cuba tem economia de terceiro mundo e desenvolvimento social de primeiro. É um tigre com dentes e garras desbastados pelo imperialismo.

Falando em império… e a aproximação com os EUA?

Essa pergunta era a que mais enrugava a testa dos cubanos. É desejada, parece ser o caminho para o fim do bloqueio, além disso, os cubanos querem cambiar com o mundo inteiro, inclusive com o povo norte-americano, mas sabem que essa nova postura do governo estadunidense é outra via com o mesmo objetivo: acabar com o caminho de soberania e socialismo escolhido pelos cubanos. A encruzilhada é como utilizar essa reaproximação sem permitir que o poderio econômico, político e cultural yankee definam os rumos do país, como faz com grande parte da América e do mundo.

A juventude é uma faixa de destaque nesse embate, pois, além da aspiração por mudanças, comum a este momento da vida, os atuais e futuros adolescentes cubanos não passaram pelo período especial e pela busca coletiva de solução dos problemas que forjaram gerações de brio e a unidade do povo. Por essa razão existe um trabalho permanente de educação para a consciência política, que inclui a obrigatoriedade do estudo da Revolução nos cursos superiores, mesmo aqueles que não estão nas ciências sociais. Ainda nesse sentido, podemos perceber que as marcas do processo de luta, encravadas na paisagem, estão, não por acaso, preservadas. Também a formação cultural das crianças eleva o que é nacional e latino-americano – sem ser xenofóbica.

Um exemplo simples, mas significativo, do que foi dito anteriormente: nas paredes – muito surradas pelo tempo – de uma escola de Ensino Fundamental I, murais com a história do povo cubano e de seu país. Nesse mesmo pátio, em seu lado oposto, uma exposição de trabalhos de crianças envolvidas num projeto de conservação ambiental. Poderiam ser murais de uma escola privada de elite, em um país qualquer. O que os diferencia é a história que está nas paredes; é a história de Cuba; é o fato de que o projeto de conservação ambiental, em Cuba, está inserido numa concepção de responsabilidade com o que é público, do povo.

Os rostos nas paredes não são de anedotas mágicas projetadas em algum estúdio de animação famoso, mas de personagens históricos e icônicos, e das próprias crianças. Algo simples, mas como construir a altivez de um povo senão afirmando que ele é senhor de sua história?

 

Soberania latino-americana

 

A presença de monumentos e referências às lutas em Cuba não se limitam à Revolução de 1959, mas remontam ao século XIX, com registros os mais diversos de pessoas e famílias que se dedicaram à causa cubana, deixando evidente que a revolução é uma continuidade direta das lutas por independência – não à toa, o maior símbolo da revolução é a própria bandeira cubana, que foi ressignificada por esse processo.

É sabido que apenas em abril de 1961, por conta dos ataques dos gusanos (cubanos contrarrevolucionários) apoiados pela CIA, Fidel Castro declara o caráter socialista da Revolução. Um movimento tático para a aproximação com a União Soviética, porém, já em 1959 são decretadas

 

reforma agrária, no mar e urbana (…)a Declaração de Havana afirmou que a “Revolução é dos pobres, pelos pobres e para os pobres” garantindo a todos o “direito à moradia adequada e é o Estado que tornará efetivo este direito”. A Declaração anunciou a nacionalização de todos os bancos, das usinas de açúcar e de mais de trezentas grandes empresas fazendo com que 80% da capacidade industrial passasse ao controle do governo. A Reforma Agrária expropriou e redistribuiu as maiores propriedades para camponeses (…) e formaram-se centenas de cooperativas para cultivar as terras das antigas usinas.

No mês seguinte foi divulgada a Reforma Urbana pondo fim à atuação de empresas privadas nas atividades imobiliárias; transformando os inquilinos em compradores de suas moradias; reduzindo à metade os aluguéis urbanos e as taxas de eletricidade e de telefone; implantando um imposto para os imóveis desocupados e forçando a venda dos terrenos baldios. Além das brigadas de autoconstrução, o Ministerio de Bienestar Social organizou campanhas sanitárias nas quais também inseria-se a erradicação dos bairros insalubres. (URBANA, pág. 97)

 

Como se vê, para promover a verdadeira independência de Cuba era necessário modificar completamente a estrutura que garantia concentração de propriedade e bens no país, e isso não é uma exclusividade da ilha. Qualquer país latino-americano que busque verdadeira soberania e independência necessita de condições internas mais justas. A conclusão teórica não é difícil, mas levar isso a cabo é enfrentar a batalha com a elite interna do país e entrar em rota de colisão com a Divisão Internacional do Trabalho e o imperialismo. Os cubanos escolheram este árduo e digno caminho.

Árduo porque os cubanos resistem há quase sessenta anos ao bloqueio econômico que lhes é imposto! Assim como os venezuelanos (mesmo que nas últimas eleições a oposição de direita assumiu a maioria das cadeiras na Assembleia Nacional) resistem a aproximadamente quinze anos de cerco estadunidense e boicote dos empresários locais, que causa grave desabastecimento.

 

Extrapolando a capacidade analítica das impressões e inquietações registradas até aqui, nos parece que a resistência de um povo frente às dificuldades causadas pelos ataques dos capitalistas é diretamente proporcional à profundidade e intensidade do processo pelo qual ele passou. Talvez isso ajude a explicar, no momento mais recente, a ascensão de representantes do neoliberalismo mais puro – que tem como premissa arrochar os trabalhadores para resolver as crises do capital – aos governos federais de Argentina e Brasil (ainda que alçados por caminhos diferentes).

 

 

Referências

CASTRO, Maria Glória da S.; GUERRA, Marcelo Nascimento; MONTEIRO, Vitor Mendes. A experiência de pesquisa e prática docente no ensino da geopolítica da revolução cubana. Anais eletrônicos do VII Congresso Brasileiro de Geógrafos. Disponível em:
http://www.cbg2014.agb.org.br/resources/anais/1/1404658699_ARQUIVO_AexperienciadepesquisaepraticadocenteGeopolitica.pdf

 

MAO JR, José Rodrigues. A Revolução Cubana e a Questão Nacional (1868-1963). São Paulo: Núcleo de Estudos d’O Capital, 2007

 

MORAIS, Fernando. A ILHA – Um repórter brasileiro no país de Fidel Castro”, 19 ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1983.

 

________________. Os últimos soldados da Guerra Fria. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

URBANA, V.6, nº 8, jun.2014 – Dossiê: Cidade e Habitação na América Latina – CIEC/UNICAMP. Disponível em:

periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/download/8635294/pdf